Ainda hoje
lembro das minhas despedidas como se fossem ontem... meu aniversario com as
inseparaveis em Londrina, a tradicional pizza do Fiametta com a familia carioca
e quando eu cheguei em casa eu ouvia ironicamente “The boxer” do Simon &
Garfunkel.
“When I left my friends and family I was no more than a boy...”
Deixando de
lado meu desapontamento atual, tenho muito a dizer. Eu sou um ponto isolado,
todos sabem que eu me mudei de casa pelo menos 10 vezes e a Belgica é o
terceiro pais pelo qual passo.
Então voce
pensa “ah o Brasil ta uma merda”, “vou embora “ eu te digo assim: o problema
não tá no Brasil criatura, tá na forma como sua vida está estruturada onde você
está, essa é a grande verdade. Se você tiver maus habitos, principalmente
voltados a seu trabalho, nem trabalhando no paraíso você terá sossego.
Em 2010 na
Italia eu morava numa suite paga pela empresa: duas portas de armario, 3
gavetas, uma mesa de dois lugares, uma tv de tudo, uma cama de solteiro,
mini-bar, fogao duas bocas, microondas e banheiro. Sou péssima de metragem mas
era pequeno. Tinha carro com gasolina paga também pela empresa mas trabalhava a
20km de casa. Eu estava no “contra-fluxo” mas quem mora em cidade grande sabe
que essa expressão não existe porque uma vez que o transito do “fluxo” engasga,
você sofre os reflexos. Naqueles 6 meses aperfeiçoei a arte de cozinhar na
janta algo que eu pudesse comer frio no almoço, comer em frente ao computador
porque comer em restaurante é um luxo que se faz uma vez ou outra. No meu caso,
1 vez, na minha despedida. Vi também que muitos colegas moravam com os pais ou
dividiam apartamentos com estranhos no melhor estilo “alugo um quarto”. Vi
também que precisava pensar a quantidade de coisas que eu tinha nos armários do
Brasil.
Em 2013 fui
pra Buenos aires e minha casa era o Sheraton; minha familia a camareira que
cuidava do meu quarto, o maitre velhinho que adorava me abraçar antes do café
da manhã e os garçons que encheram Marco de comida para ele ter energia para
ficar comigo quando foi me visitar. Os porteños não se misturam, não vão tomar
chopp contigo, nem um mate fora do horário de trabalho. Mesmo com taxi pago,
descobri o luxo de caminhar para o trabalho (mesmo que tenha me custado muitos
saltos). Como dizia Leandro, atenção porque ou você pisa em merda ou em buraco.
De qualquer forma, aquilo era um LUXO. Não precisava arrumar meu quarto, a
roupa entrava limpa e passada no meu armario, tinha academia piscina tudo
beleza e meu dia-a-dia era miserável. Trabalhava constantemente porque uma vez
que você mora onde todos os seus chefes estão, sua disponibilidade é 24x7. Só
tinha uma certeza na minha alimentação eu tomaria café da manhã porque almoçar
era um prazer que a rotina do meu projeto não permitia e eu não achava o espaço
para dizer “basta com esta palhaçada”. Poderia escrever todos os casos de
colegas na mesma situação. TI é um mercado prostituido.
Ali tomei a
decisão de vir pra Belgica. País que nunca tinha visitado nem sequer me
interessado. Eu tinha no Brasil um bom salário, numa empresa pequena que me deu
n possibilidades e um chefe maravilhoso. Quando liguei para pedir minha
demissão ele só disse: “se eu tivesse aceitado o que você me pediu..” e não eu
não havia pedido aumento. Eu havia pedido para reduzir meu salário e trabalhar
6h por dia já que perdia outras 2h30 no trânsito. Que depois da licença médica
eu queria qualidade de vida.
Dois anos aqui, com 3 mudanças de casa e 3
alocações diferentes me permite escrever um pouco melhor do que é/foi esse
momento.
- conheci
primavera, “verão”, outono, inverno igualzinho estão nos livros didaticos do
primário . Amo a primavera que a maioria
odeia porque atacam todas as alergias e o outono é divino mesmo com toda sua
sujeira. O verão, no sentido brasileiro da palavra, é contado em dias. O inverno, o inverno é o que dói e não é pelo
frio em si porque com calefação tudo é mais fácil. Não é como estar no mãe de
Deus ou na Uel as 7 da manhã com tudo gelado e ficar com mil casacos tremendo
enquanto o frio come la fora. Não tirar as luvas na sala de aula é impossível
de esquecer. A dureza do inferno é a ausência de luz. Mês que vem, a partir do
dia 15, mais ou menos, é um suplicio. Suplico para sairmos do horário de verão
e ter um pouco mais de luz no meu dia. O frio, e vamos colocar aqui abaixo de
15 graus, dura muitos meses sendo fevereiro aquele que merece o troféu em tudo
de pior: é onde está sempre mais frio, você tem os primeiros dias de “sol” e
sonha para que eles durem mais, rola a ansiedade que chegue logo a primavera,
mas ele é curto e lento.
- as ruas
são mais limpas: ainda não sei se são limpas porque as limpam com mais frequencia
(apesar de eu nunca ver), ou porque as pessoas sujam com menos intensidade. O
estranho é que a sujeira, sim ela existe, está perto de locais onde estão as
lixeiras, que por serem raras, vivem cheias.
- ha muitas
opções a preços acessiveis para estudo seja de linguas ou em nível técnicos
cujo preço médio por um semestre vai de 75 a 120 euros. Ja tive professoras ótimas
e sérissimas, ótimas que debochavam da precariedade e péssimas as quais me
fizeram desistir de seguir o curso. As escolas são perfil precario no quesito
prédio, sala, banheiro. É um padrão publico que conhecemos. Se quiser fazer um
curso com água, café, mesinha limpa vamos pra casa dos 130-140 euros mês.
- você
trabalha 8:30 como rege a lei. Se você fizer horas extras irá receber por elas
após todas as mil burocracias e pagar um imposto filha da mãe sobre elas. Ao
menos em TI, regulamentado pela lei, e para as horas trabalhadas nos sábados ou
domingos, você pode optar por receber um
dia normal no que diz respeito a taxação de imposto padrão e tirar um outro dia
em férias. A minha empresa permite que eles se acumulem, outras não.
- os horários
de trabalho são flexíveis . No setor bancario onde eu trabalho, entra-se a
partir de 6 da manhã (talvez porque o transito seja insano pela manhã). Ai está
o começo do que eu chamo: qualidade de vida. Eu sou a dama da insonia, motivo
pelo qual depois do almoço passo a modo zumbi. Quando descobri que poderia
trabalhar cedo o mundo se abriu com
sorrisos para mim. Chego cedo e isso me permite ter tempo de ir ao comércio pós
trabalho, pegar a academia ainda vazia, e no passado dormir antes de ir pra
aula a noite
- assim
como você tem normas lindas de trabalho, os outros também tem. Logo, comércio
fecha as 18 mais tardar 19h incluindo farmácias. Os supermercados abrem entre
8/8:30 até 20/20:30. Adapte-se. Até pouco tempo atrás nenhuma lojinha abria
domingo em Bruxelas.
- eu
continuo trocando de roupa todos os dias o que aqui é uma aberração. Lavar
roupa demais estraga as roupas disse-me um colega (é fato mas não me lavar ou
deixa-las sujas estraga meu olfato). Há quem troque de roupa duas vezes na semana,
ou três no máximo.
- Jeans,
casaco, sapato, tenis, camisa, camiseta. Não há luxo. Vez ou outra você ve uma
colega fora da curva bem arrumaba mas o geral é basicão o que faz sua vida ser
muito mas muito mais barata. Uma calça jeans na zara custa 35 euros, camisetas
básicas eu compro as promocionais de 7 ou 8 euros. Casacos bons são caros mas
necessários mas raramente você vê pessoas com um casaco bom de inverno de cada
cor. Você tem 1 preto (certeza) e outro. Ser virginiana me permite ver os
casacos das colegas e concluir esse número com medo de errar.
- O cabelo
e a pele vão pro saco. Sou a maior testadora de cremes. Eu da pele sempre sedosa
hoje carrego uma coisa que é eternamente seca como o solo do sertão. Tenho
óleos e mais óleos, manteigas e mais manteigas. Ah! Essa vai para as meninas: pé e mão (30 euros), cortar o cabelo e fazer escova (50 euros) e a famosa virilha completa (55 euros).
- aprendi a
comer chocolate amargo e isso me permite comer chocolate todo dia J
- aprendi a
gostar de cerveja, escolhi as triple como minhas amigas. Gasta-se de 3.5 a 5.5
por garrafa pelos bares da vida. Com duas fico feliz com três a Kate briga
porque é “dose” pra felina
- trago
todos os meus remédios do Brasil porque quase nada aqui é vendido sem receitas.
Descobri que a Holanda é mais companheira então as vezes pegar o carro e ir até
lá pra comprar vira uma possibilidade.
- o carro é
um dos “beneficios” do meu contrato mas como diz o filosófo patriarca rangel,
não existe almoço gratis nessa vida logo, sai todo mês uma média de 90 euros do
meu salário pelo meu luxo.
- não há
saúde de graça e quando eu falo do Brasil as pessoas se chocam que não paguemos
nada nos hospitais publicos e postos de saúde: “Paula isso não funciona” e de
fato sabemos que não. Pago o SS como no brasil (550 euros) mas pago também uma
mutualite (120 euros ano) para que tenha direito a algum reembolso de
consultas. Ja fui ao hospital público,
tinha consulta marcada e fui atendida 2horas depois. Paguei o preço de tabela
28 euros dos quais 18 voltam para mim pela mutual. É mais ou menos assim que o
jogo funciona. De novo, “não há almoço de graça”
- como todo
lugar no mundo há lugares para ir e para não ir explicados desde os meus
primeiros dias aqui. Eu estudo numa vizinhança “bem abre olhos” e tudo que se
vê no Rio se repete ali: a vezes pulam as catracas do tram, as vezes passam em
dois, as vezes disparam o alarme para que as catracas se abram e eles passem
livremente pela saída do tram. A sensação de segurança é excelente. Há quem não
ligue, eu sinceramente, sou muito certinha para não me assustar. Problema
virginiano só meu.
- não tenho
preguiça de dirigir então nesses 2 anos ir a Alemanha, a França a Holanda num
bate e volta é normal. O tempo que eu gasto para chegar em Lille , por exemplo,
é quase o mesmo que eu levava de manhã para ir de botafogo a barra da tijuca .
Para os locais eu sou insana e conheço mais cidades na Bélgica que muitos
deles. Não ligo, é um jeito de passar os dias.
- e por fim
as férias, a coisa mais importante pro trabalhador depois do salário. O meu
contrato me dá anualmente 32 dias úteis de férias que eu tiro como e quando eu
quiser logo sua flexibilidade aumenta muito. Nunca fui uma pessoa que gostasse
de ficar 20 dias viajando: 10 dias é meu limite. Feriados de sábados e domingos
são transferidos para segunda feira ou para algum outro dia do ano que possa
virar uma “ponte”. Em geral
- e por
fim, meu salário liquido é 58% do bruto. O 13º. salário vem supertaxado de
imposto chegando a um liquido de 40%. Se você não pagar um plano de previdência
privada, esqueça retorno de imposto de renda. Você ira pagar algo no ano
seguinte.
Tá chega
mas porque você escreveu tudo isso dona Onça?
Porque
muita gente acha que a vida no exterior é "só glamour” e eu sou de signo
de terra com ascendente em terra, prefiro fatos. Não, não é só luxo. O que
descobri aqui é que realmente é a forma como está estruturado seu trabalho é
que te dá ou tira a qualidade da vida em grande parte do que vivi. Trabalhei aqui
em lugar que ía de carro (um stress), trabalhei do lado de casa (um sonho),
hoje trabalho a 8 estações de metro de casa e aí o humor é variável. Se pegar o
horário mortal vou suando com gente nem sempre perfumada num metro cheio e
volto na mesma situação. Se for no horário dos insones, sento bonitinha, tudo é
lindo.
Eu cumpro
meus horários, não me permito mais ceder a olhares do tipo “mas já vai?” “não
fica 5 minutos se não tem marido nem filhos” e quando me encho digo: lá fora
tem uma vida a minha espera. Com o tempo que sobra eu como melhor, eu vou mais
a academia, eu caminho para gastar as calorias do chocolate, eu encontro os
amigos para uma cerveja ou jantar, estudo ou simplesmente aperfeiçoo a arte do “não
fazer nada”.
Acho que é
isso. Longe você entende que na sua vida só fica quem te quer bem e faz questão
de saber de você e vice e versa. Acompanho meus amigos como posso, como a
tecnologia permite e não me sinto mal com isso. Tem dias que você queria estar
cantando parabéns com os bebês lindos, ou queria dar um colo, ou um porrão na
cabeça, ou ir a qualquer lugar calmo, ou tomar sorvete com eles mas não pode. E
aí você fica triste pacas depois passa como uma longa ressaca de vodka. Estamos
todos sós em nossos micromundos de uma certa maneira, mas as vezes é bom juntar
a minha solidão com a sua e fazer um bom caldo juntos. Rimos muito.
Agradeço as
visitas que recebi, aos momentos de enorme emoção a distancia que compartilhei,
aos que me acompanham nas madrugadas insones. Esses dois anos tem vocês no
suporte. Obrigada.
Tenho sorte
na vida de passar por lugares e arranjar gente para rir e chorar comigo. Tenho
toda noite a certeza de que valeu tudo até aqui.
Hoje aqui,
amanhã não se sabe.
PS: Hoje minha vó irene faria 100 anos...um dia ela me disse para fazer bastante coisa para na idade dela ter o que lembrar. Acho que cumpri a promessa.
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