sábado, 26 de setembro de 2015

26 de setembro de 2015 – 2 anos de Belgica


Ainda hoje lembro das minhas despedidas como se fossem ontem... meu aniversario com as inseparaveis em Londrina, a tradicional pizza do Fiametta com a familia carioca e quando eu cheguei em casa eu ouvia ironicamente “The boxer” do Simon & Garfunkel.

“When I left my friends and family I was no more than a boy...”


Deixando de lado meu desapontamento atual, tenho muito a dizer. Eu sou um ponto isolado, todos sabem que eu me mudei de casa pelo menos 10 vezes e a Belgica é o terceiro pais pelo qual passo.

Então voce pensa “ah o Brasil ta uma merda”, “vou embora “ eu te digo assim: o problema não tá no Brasil criatura, tá na forma como sua vida está estruturada onde você está, essa é a grande verdade. Se você tiver maus habitos, principalmente voltados a seu trabalho, nem trabalhando no paraíso você terá sossego.

Em 2010 na Italia eu morava numa suite paga pela empresa: duas portas de armario, 3 gavetas, uma mesa de dois lugares, uma tv de tudo, uma cama de solteiro, mini-bar, fogao duas bocas, microondas e banheiro. Sou péssima de metragem mas era pequeno. Tinha carro com gasolina paga também pela empresa mas trabalhava a 20km de casa. Eu estava no “contra-fluxo” mas quem mora em cidade grande sabe que essa expressão não existe porque uma vez que o transito do “fluxo” engasga, você sofre os reflexos. Naqueles 6 meses aperfeiçoei a arte de cozinhar na janta algo que eu pudesse comer frio no almoço, comer em frente ao computador porque comer em restaurante é um luxo que se faz uma vez ou outra. No meu caso, 1 vez, na minha despedida. Vi também que muitos colegas moravam com os pais ou dividiam apartamentos com estranhos no melhor estilo “alugo um quarto”. Vi também que precisava pensar a quantidade de coisas que eu tinha nos armários do Brasil.

Em 2013 fui pra Buenos aires e minha casa era o Sheraton; minha familia a camareira que cuidava do meu quarto, o maitre velhinho que adorava me abraçar antes do café da manhã e os garçons que encheram Marco de comida para ele ter energia para ficar comigo quando foi me visitar. Os porteños não se misturam, não vão tomar chopp contigo, nem um mate fora do horário de trabalho. Mesmo com taxi pago, descobri o luxo de caminhar para o trabalho (mesmo que tenha me custado muitos saltos). Como dizia Leandro, atenção porque ou você pisa em merda ou em buraco. De qualquer forma, aquilo era um LUXO. Não precisava arrumar meu quarto, a roupa entrava limpa e passada no meu armario, tinha academia piscina tudo beleza e meu dia-a-dia era miserável. Trabalhava constantemente porque uma vez que você mora onde todos os seus chefes estão, sua disponibilidade é 24x7. Só tinha uma certeza na minha alimentação eu tomaria café da manhã porque almoçar era um prazer que a rotina do meu projeto não permitia e eu não achava o espaço para dizer “basta com esta palhaçada”. Poderia escrever todos os casos de colegas na mesma situação. TI é um mercado prostituido.

Ali tomei a decisão de vir pra Belgica. País que nunca tinha visitado nem sequer me interessado. Eu tinha no Brasil um bom salário, numa empresa pequena que me deu n possibilidades e um chefe maravilhoso. Quando liguei para pedir minha demissão ele só disse: “se eu tivesse aceitado o que você me pediu..” e não eu não havia pedido aumento. Eu havia pedido para reduzir meu salário e trabalhar 6h por dia já que perdia outras 2h30 no trânsito. Que depois da licença médica eu queria qualidade de vida.

 Dois anos aqui, com 3 mudanças de casa e 3 alocações diferentes me permite escrever um pouco melhor do que é/foi esse momento.

- conheci primavera, “verão”, outono, inverno igualzinho estão nos livros didaticos do primário .  Amo a primavera que a maioria odeia porque atacam todas as alergias e o outono é divino mesmo com toda sua sujeira. O verão, no sentido brasileiro da palavra, é contado em dias.  O inverno, o inverno é o que dói e não é pelo frio em si porque com calefação tudo é mais fácil. Não é como estar no mãe de Deus ou na Uel as 7 da manhã com tudo gelado e ficar com mil casacos tremendo enquanto o frio come la fora. Não tirar as luvas na sala de aula é impossível de esquecer. A dureza do inferno é a ausência de luz. Mês que vem, a partir do dia 15, mais ou menos, é um suplicio. Suplico para sairmos do horário de verão e ter um pouco mais de luz no meu dia. O frio, e vamos colocar aqui abaixo de 15 graus, dura muitos meses sendo fevereiro aquele que merece o troféu em tudo de pior: é onde está sempre mais frio, você tem os primeiros dias de “sol” e sonha para que eles durem mais, rola a ansiedade que chegue logo a primavera, mas ele é curto e lento.

- as ruas são mais limpas: ainda não sei se são limpas porque as limpam com mais frequencia (apesar de eu nunca ver), ou porque as pessoas sujam com menos intensidade. O estranho é que a sujeira, sim ela  existe, está perto de locais onde estão as lixeiras, que por serem raras, vivem cheias.

- ha muitas opções a preços acessiveis para estudo seja de linguas ou em nível técnicos cujo preço médio por um semestre vai de 75 a 120 euros. Ja tive professoras ótimas e sérissimas, ótimas que debochavam da precariedade e péssimas as quais me fizeram desistir de seguir o curso. As escolas são perfil precario no quesito prédio, sala, banheiro. É um padrão publico que conhecemos. Se quiser fazer um curso com água, café, mesinha limpa vamos pra casa dos 130-140 euros mês.

- você trabalha 8:30 como rege a lei. Se você fizer horas extras irá receber por elas após todas as mil burocracias e pagar um imposto filha da mãe sobre elas. Ao menos em TI, regulamentado pela lei, e para as horas trabalhadas nos sábados ou domingos, você pode  optar por receber um dia normal no que diz respeito a taxação de imposto padrão e tirar um outro dia em férias. A minha empresa permite que eles se acumulem, outras não.

- os horários de trabalho são flexíveis . No setor bancario onde eu trabalho, entra-se a partir de 6 da manhã (talvez porque o transito seja insano pela manhã). Ai está o começo do que eu chamo: qualidade de vida. Eu sou a dama da insonia, motivo pelo qual depois do almoço passo a modo zumbi. Quando descobri que poderia trabalhar cedo o mundo se abriu  com sorrisos para mim. Chego cedo e isso me permite ter tempo de ir ao comércio pós trabalho, pegar a academia ainda vazia, e no passado dormir antes de ir pra aula a noite

- assim como você tem normas lindas de trabalho, os outros também tem. Logo, comércio fecha as 18 mais tardar 19h incluindo farmácias. Os supermercados abrem entre 8/8:30 até 20/20:30. Adapte-se. Até pouco tempo atrás nenhuma lojinha abria domingo em Bruxelas.

- eu continuo trocando de roupa todos os dias o que aqui é uma aberração. Lavar roupa demais estraga as roupas disse-me um colega (é fato mas não me lavar ou deixa-las sujas estraga meu olfato). Há quem troque de roupa duas vezes na semana, ou três no máximo.

- Jeans, casaco, sapato, tenis, camisa, camiseta. Não há luxo. Vez ou outra você ve uma colega fora da curva bem arrumaba mas o geral é basicão o que faz sua vida ser muito mas muito mais barata. Uma calça jeans na zara custa 35 euros, camisetas básicas eu compro as promocionais de 7 ou 8 euros. Casacos bons são caros mas necessários mas raramente você vê pessoas com um casaco bom de inverno de cada cor. Você tem 1 preto (certeza) e outro. Ser virginiana me permite ver os casacos das colegas e concluir esse número com medo de errar.

- O cabelo e a pele vão pro saco. Sou a maior testadora de cremes. Eu da pele sempre sedosa hoje carrego uma coisa que é eternamente seca como o solo do sertão. Tenho óleos e mais óleos, manteigas e mais manteigas. Ah! Essa vai para as meninas: pé e mão  (30 euros), cortar o cabelo e fazer escova (50 euros) e a famosa virilha completa (55 euros). 

- aprendi a comer chocolate amargo e isso me permite comer chocolate todo dia J

- aprendi a gostar de cerveja, escolhi as triple como minhas amigas. Gasta-se de 3.5 a 5.5 por garrafa pelos bares da vida. Com duas fico feliz com três a Kate briga porque é “dose” pra felina

- trago todos os meus remédios do Brasil porque quase nada aqui é vendido sem receitas. Descobri que a Holanda é mais companheira então as vezes pegar o carro e ir até lá pra comprar vira uma possibilidade.

- o carro é um dos “beneficios” do meu contrato mas como diz o filosófo patriarca rangel, não existe almoço gratis nessa vida logo, sai todo mês uma média de 90 euros do meu salário pelo meu luxo.

- não há saúde de graça e quando eu falo do Brasil as pessoas se chocam que não paguemos nada nos hospitais publicos e postos de saúde: “Paula isso não funciona” e de fato sabemos que não. Pago o SS como no brasil (550 euros) mas pago também uma mutualite (120 euros ano) para que tenha direito a algum reembolso de consultas.  Ja fui ao hospital público, tinha consulta marcada e fui atendida 2horas depois. Paguei o preço de tabela 28 euros dos quais 18 voltam para mim pela mutual. É mais ou menos assim que o jogo funciona. De novo, “não há almoço de graça”

- como todo lugar no mundo há lugares para ir e para não ir explicados desde os meus primeiros dias aqui. Eu estudo numa vizinhança “bem abre olhos” e tudo que se vê no Rio se repete ali: a vezes pulam as catracas do tram, as vezes passam em dois, as vezes disparam o alarme para que as catracas se abram e eles passem livremente pela saída do tram. A sensação de segurança é excelente. Há quem não ligue, eu sinceramente, sou muito certinha para não me assustar. Problema virginiano só meu.

- não tenho preguiça de dirigir então nesses 2 anos ir a Alemanha, a França a Holanda num bate e volta é normal. O tempo que eu gasto para chegar em Lille , por exemplo, é quase o mesmo que eu levava de manhã para ir de botafogo a barra da tijuca . Para os locais eu sou insana e conheço mais cidades na Bélgica que muitos deles. Não ligo, é um jeito de passar os dias.

- e por fim as férias, a coisa mais importante pro trabalhador depois do salário. O meu contrato me dá anualmente 32 dias úteis de férias que eu tiro como e quando eu quiser logo sua flexibilidade aumenta muito. Nunca fui uma pessoa que gostasse de ficar 20 dias viajando: 10 dias é meu limite. Feriados de sábados e domingos são transferidos para segunda feira ou para algum outro dia do ano que possa virar uma “ponte”. Em geral  

- e por fim, meu salário liquido é 58% do bruto. O 13º. salário vem supertaxado de imposto chegando a um liquido de 40%. Se você não pagar um plano de previdência privada, esqueça retorno de imposto de renda. Você ira pagar algo no ano seguinte.

Tá chega mas porque você escreveu tudo isso dona Onça?
Porque muita gente acha que a vida no exterior é "só glamour” e eu sou de signo de terra com ascendente em terra, prefiro fatos. Não, não é só luxo. O que descobri aqui é que realmente é a forma como está estruturado seu trabalho é que te dá ou tira a qualidade da vida em grande parte do que vivi. Trabalhei aqui em lugar que ía de carro (um stress), trabalhei do lado de casa (um sonho), hoje trabalho a 8 estações de metro de casa e aí o humor é variável. Se pegar o horário mortal vou suando com gente nem sempre perfumada num metro cheio e volto na mesma situação. Se for no horário dos insones, sento bonitinha, tudo é lindo.
Eu cumpro meus horários, não me permito mais ceder a olhares do tipo “mas já vai?” “não fica 5 minutos se não tem marido nem filhos” e quando me encho digo: lá fora tem uma vida a minha espera. Com o tempo que sobra eu como melhor, eu vou mais a academia, eu caminho para gastar as calorias do chocolate, eu encontro os amigos para uma cerveja ou jantar, estudo ou simplesmente aperfeiçoo a arte do “não fazer nada”.
Acho que é isso. Longe você entende que na sua vida só fica quem te quer bem e faz questão de saber de você e vice e versa. Acompanho meus amigos como posso, como a tecnologia permite e não me sinto mal com isso. Tem dias que você queria estar cantando parabéns com os bebês lindos, ou queria dar um colo, ou um porrão na cabeça, ou ir a qualquer lugar calmo, ou tomar sorvete com eles mas não pode. E aí você fica triste pacas depois passa como uma longa ressaca de vodka. Estamos todos sós em nossos micromundos de uma certa maneira, mas as vezes é bom juntar a minha solidão com a sua e fazer um bom caldo juntos. Rimos muito.
Agradeço as visitas que recebi, aos momentos de enorme emoção a distancia que compartilhei, aos que me acompanham nas madrugadas insones. Esses dois anos tem vocês no suporte. Obrigada.
Tenho sorte na vida de passar por lugares e arranjar gente para rir e chorar comigo. Tenho toda noite a certeza de que valeu tudo até aqui. 
Hoje aqui, amanhã não se sabe.



PS: Hoje minha vó irene faria 100 anos...um dia ela me disse para fazer bastante coisa para na idade dela ter o que lembrar. Acho que cumpri a promessa.